"Um sorriso sem jeito. E se descobre que a vida está feita, desde muitos anos atrás, de mal entendidos. Gertrudis, meu trabalho, minha amizade com Stein, a sensação que tenho de mim mesmo, mal entendidos. Fora isso, nada; de vez enquando algumas opurtunidades de esquecer, alguns prazeres, que chegam e passam envenenados. Talvez todo tipo de existência que eu possa imaginar transforma-se em um mal entendido. Talvez, pouco importa. Entretanto, sou esse homem pequeno e tímido, imutável, casado com a única mulher que consegui seduzir ou que me seduziu, incapaz, não ainda de ser outro, senão da mesma vontade de ser outro. O homenzinho que se magoa na medida em que a aflição se lhe impõe, homenzinho confundido numa legião de homenzinhos aos quais foi prometido o reino dos céus. Asceta, como zomba o Stein, pela impossibilidade de me apaixonar e não pelo acertado absurdo de uma convicção eventualmente mutilada. Esse, ser no taxi, inexistente, mera encarnação da idéia Juan María Brausen, símbolo bípede de um puritanismo barato feito de negativas - não ao alccol, não ao tabaco, um não equivalente para as mulheres -, ninguém, em realidade; um nome, três palavras, uma diminuta idéia construida mecanicamente por meu pai, sem oposições, para que suas negativas herdadas continuassem sacundindo suas cabecinhas vaidosas mesmo depois de sua morte. O pequeno homem e seus mal entendidos, certamente, como para todo o mundo. Talvez seja isso que uma pessoa vai aprendendo com os anos, insensívelmente, sem prestar atenção. Talvez nossos ossos saibam disso quando estamos decididos e desesperados, junto a altura de um muro que nos prende, tão fácil de saltar se fosse possível saltá-lo; quando estamos a um passo de aceitar que, definitivamente, o importante seja somente si próprio, porque isso é o unica coisa que nos foi indiscutivelmente confiada; quando vislumbramos que somente a própria salvação pode ser um imperativo moral, que somente nossa salvação é moral; quando logramos respirar por um impensado resquicio de ar primordial que vibra e chama ao outro lado do muro, imaginar a satisfação, o desfeito e a soltura, talvez então nos pese, como um esqueleto de chumbo metido dentro dos nossos ossos, a convicção de que todo mal entendido é suportável até a morte, a não ser o que cheguemos a descobrir fora de nossas circunstâncias pessoais, fora das responsabilidades que podemos repudiar, atribuir, derivar."
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