quarta-feira, maio 28, 2008

assim mesmo (mesmo assim)

Íris acorda, sente que uma noite de sono nunca foi suficiente. Não consegue levantar e desligar o relógio, buzina, buzina, buzina,estica o braço, aperta o botão. Ensaia levantar, mas deita. Na segunda tentativa coloca o pé no chão, mas chão não há. Tenta entender o que acontece, tudo continua em volta, as coisas em seus lugares, o relógio, os livros, as roupas, em cima da estante, as paredes em seus lugares, a porta aberta por um visitante que virá depois de amanhã ou que veio ontem.



Deitou, respirou profundamente, seguindo as técnicas de relaxamento, tentou puxar no fio da memória o que ocorrera até ali. Lembra-se que na manhã anterior tudo ia muito bem, a não ser pelo sono, até que ao sair do apartamento apertando o botão do elevador gelou de medo, e se o elevador que vinha do décimo primeiro andar bem na hora dela entrar nele rompesse o cabo e ela morresse de maneira estupefata. Decidiu depois de alguns segundos que o mais sensato seria descer pelas escadas.



Inverno na rua. Chuviscando folhas, gostoso caminhar, instântaneos rompem no vai e vem da rotina. Um menino que vende suco na calçada, a mulher que lucrou mais porque vendia café com leite quentinho. Inferno era o lixo e água empoçados na guia, fedia. Tomou o primeiro ônibus, sorte. O azar, as janelas estão fechadas, como as de seu quarto, o bafo, aquele cheiro de não sei quê amargo. Passou a catraca, olhou, buscou assento vago, tinha um ao lado duma mulher, nenhum na janela. Conformou-se em acostumar-se com o fedor, todo mundo se acostuma.



Cochilou, pensou na amiga, achava que a culpa era dela por não ver mais a amiga da amiga de quem Íris gostava. Sonhou também com o padrasto que a tentou surpreender no quarto, entrou sem bater. Reparou num velho japonês, de uma tranquilidade infinita que deveria ter a idade de seu pai se ele não houvesse morrido. Chegou no trabalho, cumprimentou seus colegas, trabalhou, almoçou, trabalhou. Fim de tarde, pensou em pegar um cineminha. O onibus naquele horário era uma lata de gente em conserva. O pior eram os caras que gostam de se esfregar na gente.
Volta pra casa depois de 103 minutos de Short cuts. Evasão, a sós, a não ser pelo rapaz que encosta em seu catovelo algumas vezes e duas pessoas de comentários ignóbeis. Bom poder assistir filme sem precisar comentar no final, sem ter necessidade de falar gostei ou não. Fechou os olhos, tenta rememorar algumas cenas, um diálogo, o silêncio. Na saída ouve sobre o filme algo de gente que se acha.




Volta pra casa cansada do ônibus, rotina, salário. Tem receio em pegar o elevador mas entra mesmo assim.
No apartamento, papai e mamãe estão no quarto. Lembro-me da bíblia na mesa, da luz que passava pela fresta da porta do quarto dos dois. Ouvi berros lá dentro. Hoje não tomo banho, durmo suja assim mesmo. Tranquei a porta. Deitei. Noite mal dormida, ruído e rumor, angustia. Tinha um louva deus gigante que entrava no quarto, pulava nas minhas costas, não consegui me mexer, real agonia, fecho bem os olhos e o bicho se transforma em um enorme par de asas, dói, choro, por que não posso voar?




Perdeu a referência
Íris acorda, sente que uma noite de sono nunca foi suficiente. Não consegue levantar e desligar o relógio, buzina, buzina, buzina,estica o braço, aperta o botão. Ensaia levantar, mas deita. Na segunda tentativa coloca o pé no chão, mas chão não há. Tenta entender o que acontece, tudo continua em volta, as coisas em seus lugares, o relógio, os livros, as roupas, em cima da estante, as paredes em seus lugares, a porta aberta por um visitante que virá depois de amanhã ou que veio ontem.


Deitou, respirou profundamente, seguindo as técnicas de relaxamento. Lembra-se que na manhã anterior tudo ia muito bem, a não ser pelo sono, até que ao sair do apartamento, apertando o botão do elevador gelou de medo, e se o elevador que vinha do décimo primeiro andar bem na hora dela entrar nele rompesse o cabo e ela morresse de maneira estupefata. Decidiu depois de alguns segundos que o mais sensato seria descer pelas escadas.


Inverno na rua. Chuviscando folhas, instântaneos rompem no vai e vem da rotina. Um menino que vende suco na calçada, a mulher que lucrou mais porque vendia café com leite quentinho. Inferno era o lixo e água empoçados na guia, fedia. Tomou o primeiro ônibus, sorte. O azar, as janelas estão fechadas, como as de seu quarto, o bafo, aquele cheiro de não sei quê amargo. Passou a catraca, olhou, buscou acento vago, tinha um ao lado duma mulher, nenhum na janela. Conformou-se em acostumar-se com o fedor, todo mundo se acostuma.


Cochilou, pensou na amiga. Sonhou também com o padrasto que a tentou surpreender no quarto, entrou sem bater. Reparou num velho japonês, de uma tranquilidade infinita que deveria ter a idade de seu pai se ele não houvesse morrido. Chegou no trabalho, cumprimentou seus colegas, trabalhou, almoçou, trabalhou. Fim de tarde, pensou em pegar um cineminha. O onibus naquele horário era uma lata de gente em conserva. O pior eram os caras que gostam de se esfregar na gente.
Volta pra casa depois de 103 minutos de Short cuts. Evasão, a sós, embora haja um rapaz que encosta em seu catovelo algumas vezes e comentários ignóbeis. Bom poder assistir filme sem precisar comentar no final, sem ter necessidade de falar gostei ou não. Fechou os olhos, ela gosta de filmes que não a faziam comprar algo.

Volta pra casa cansada do ônibus, rotina, salário. Tem receio em pegar o elevador mas entra mesmo assim. No apartamento, papai e mamãe estão no quarto. Lembro-me da bíblia na mesa, da luz que passava pela fresta da porta do quarto dos dois. Ouvi berros lá dentro. Hoje não tomo banho, durmo suja assim mesmo. Tranquei a porta. Deitei. Noite mal dormida, ruído e rumor, angustia. Tinha um louva deus gigante que entrava no quarto, pulava nas minhas costas, não consegui me mexer, real agonia, fecho bem os olhos e o bicho se transforma em um enorme par de asas, dói, choro, por que não posso voar?

Perdeu a referência

Um comentário:

Marina Pavelosk Migliacci disse...

gostei muito do jogo que vc criou com o texto e com o leitor!
e adoro textos que transbordam angústia.
desculpe a demora para ler...eu tô presa no meu blog tentando escrever coisas e acabo deixando de visitar amigos!
ainda não li o texto q me indicou, mas vou ler...tô no processo tentar ler tudo o q eu tenho vontade e não tenho tempo. não q eu tenha tempo, mas só de não ter q ir para letras, é um adianto de vida, né chuchu?! hehehe
:D
beijos