Michele II
, QUE SERIA MUITO SIMPLISTA. Assim segue o texto:BOLETIM CLÍNICO - número 19 - novembro/2004
3. A Perda e o Retorno do Pai
Ensaio apresentado em Mesa Redonda no Simpósio "Perspectivas junguianas para o terceiro milênio, PUC-SP, 1999.
Este ensaio visa compreender a questão da chamada "perda do pai" no indivíduo e na cultura contemporâneos, a síndrome do pai ausente tão apontada pela Psicologia Analítica nas décadas de 80 e 90, assim como mostrar alguns possíveis desdobramentos deste problema.
Iniciaremos com o relato de três situações aparentemente não relacionadas:
Situação 1: Em uma sessão de análise, um homem, na faixa dos quarenta, se queixa que sua casa está um pandemônio e ele não encontra lugar nela - sua mulher fala alto e ocupa o telefone; seus filhos estão alojados cada um em uma TV e o computador... sempre ligado na Internet!. Conta um sonho em que ele é o chefe de uma família muçulmana e ali ele reina soberano.
Situação 2: Em uma escola no Colorado, nos Estados Unidos, dois jovens de classe média alta, filhos de respeitáveis pais, e que se sentiam marginalizados na escola, resolvem detonar os seus colegas, no sentido estrito da palavra: carregados de munições, promovem uma carnificina, matando vários deles, ferindo outros e destruindo muitos equipamentos.
Situação 3: os jornais noticiam atos de vandalismo nas escolas públicas de São Paulo: bombas, jovens que se matam por motivos aparentemente triviais, competição destrutiva de gangues.
Estes e outros exemplos aparecem quase todos os dias na imprensa e povoam e amedrontam as nossas vidas - o que estaria acontecendo? Onde, no meio de situações tão díspares e do caos, podemos extrair um sentido?
Gostaríamos de analisar estas situações tendo como referência alguns conceitos da Psicologia Analítica, em especial o arquétipo paterno, o arquétipo bipolar Senex-Puer e suas manifestações.
O pai é entendido na Psicologia Analítica em primeiro lugar como um símbolo. Segundo Jung, Von Franz e outros teóricos da Psicologia Analítica, o pai como símbolo representa, nas palavras de Tacey, "a ordem do mundo, a tradição estabelecida e o edifício moral construído por aquela tradição" (Tacey, 1997, p.38).
Nos mitos e contos de fada podemos ver esta figura aparecendo, por exemplo, como o rei doente que vai morrer e deseja deixar o seu legado para um filho, que deverá ser escolhido, em geral, entre três (von Franz, 1981). Ou aparece como um rei doente que possui uma ferida que deverá, como na lenda de Parsifal, ser curada através de um ato realizado por um jovem predestinado (Johnson, 1994).
Este símbolo, aponta, portanto, que há uma ordem antiga do mundo e da cultura que está morrendo ou está gravemente ferida e que deverá ser redimida ou substituída por uma nova.
Assim, estabelece-se uma dinâmica entre o velho elemento, o Senex, e o novo, o Puer, componentes do arquétipo bipolar Senex-Puer, como assinala James Hillman (1990), como um dinamismo coletivo inconsciente e que está na base dos fenômenos culturais e sócio-históricos, na família, nos relacionamentos e no indivíduo (Hillman,1990). No nível das manifestações, esta dinâmica gera ou é sincronística a eventos históricos, como as revoluções sociais, econômicas e políticas e em relações específicas, como é a relação pai e filho, no já proclamado conflito de gerações.
O Puer, o arquétipo da criança, em oposição ao Senex, é um arquétipo que anuncia um novo estado de consciência, uma nova atitude. Como símbolo é ele quem nos traz a renovação, o lúdico, a saída da estagnação e a criatividade. Durante muito tempo a criança, foi ligada (e isso muito por responsabilidade da própria Psicologia), à imaturidade, ao infantilismo, ao narcisismo e à onipotência. Como dizemos habitualmente, ao nos referirmos àlgumas pessoas: "ele é muito infantil, não amadureceu..." A bipolaridade de todo arquétipo, todavia, nos faz ver que a criança não nos fala apenas do aspecto patológico da psique, mas também é aquela que está mais próxima da origem, do inconsciente e do manancial criativo deste.
Podemos perceber na história da família e da criança, como aponta Ariès (1978), que a partir do século XVI a criança foi sendo vista de uma forma diferente, não mais um adulto em miniatura, ou um servo encarregado de serviços pesados, mas como um membro a ser cuidado e amparado. Com a fundação da escola, esta constituiu um lugar para a sua formação.
A família moderna, portanto, no início de sua constituição (e que se evidenciaria na família nuclear), começa a girar em torno da criança, vista agora em seu desamparo e necessitada de um desenvolvimento. Isto deu uma nova configuração à família, um lugar de sentimentos, onde o que conta é o cuidado e o amor e não mais como uma posse que, por sua vez, iria tomar conta da linhagem e patrimônio do pai.
Ao mesmo tempo, no entanto, em que a criança é promovida, em que este arquétipo começa a invadir a consciência coletiva, o símbolo do Pai começa a entrar em decadência. Na Revolução Francesa, os pais autoritários da pátria são depostos pelo povo, que adota o seguinte lema: igualdade, liberdade e fraternidade, ideário que até hoje é perseguido e debilmente alcançado.
O ideário da Revolução Francesa antecipa uma aspiração, como utopia, daquilo que recentemente vai sendo estabelecido de forma mais concreta, como direitos: liberdade enquanto fim da dominação de um povo sobre outro, de uma religião sobre outra, de uma tendência sexual sobre outra, do homem sobre mulher, o estabelecimento dos direitos da criança e do adolescente. Todos, pelo menos no ideário, são iguais como cidadãos e perante a Lei. E a fraternidade se estabelece como um princípio na relação entre as pessoas.
A fraternidade, como um ideário, parece apontar como um aspecto da nova consciência que está se desenvolvendo, que enxerga o outro como um irmão. Não como aquele a quem eu me sujeito ou a quem eu sujeito, estabelecendo uma condição que parece propor, ao menos timidamente a dinâmica da alteridade, como coloca Carlos Byington (1983).
Os ideários de mudança corroem, portanto, o símbolo do pai gradativamente durante os séculos, paulatinamente e fazem emergir o símbolo da criança como uma força renovadora.
Estas mudanças trouxeram uma decorrada do pai na consciência coletiva e individual. Na família, visto e idealizado até o século XIX como guia para todas as circunstâncias, o pai agora não é apenas criticado, mas desvalorizado. Muitos de seus papéis, como o educador, foram absorvidos pela escola. A mãe começa a despontar nesta dinâmica como o principal ator no espaço doméstico, ao lado dos filhos, enquanto o pai se afasta da cena.
O século XX assistiu, em todas as manifestações sociais a derrocada do pai, a descoberta de seu lado sombrio, o lado unilateral e repressivo do patriarcado. Assim, o espaço luminoso e idealizado do pai-tradição foi empanado pelo seu lado sombrio e pouco misericordioso. A literatura nos deu mostras deste aspecto, como em "Cartas a meu pai", de Kafka, onde ele conta os aspectos repressivos na relação com seu pai e "A morte de Ivan Ilitclh", de Tolstoi, que nos fala de um funcionário público sufocado pelas convenções coletivas, expressão de um pai cultural autoritário (Kast, 1997; Stein, 1979).
O movimento feminista também ajudou a erodir este símbolo, na conquista do direito das mulheres. Em seus escritos, as feministas ressaltaram os aspectos repressivos do patriarcado tanto para as mulheres, quanto para os homens. Os movimentos masculinos, por outro lado e na mesma linha, assinalam o nascimento de uma nova masculinidade e uma nova paternidade, nascidas da participação do pai na vida doméstica e na dimensão igualitária dos relacionamentos.
A Psicologia Analítica não escapa deste movimento, assinalando a presença do complexo paterno negativo, do Cronos devorador de seus filhos e produtor de patologias psíquicas (Vitale, 1979).
A ênfase, no entanto, no aspecto negativo do pai, arrastou para o inconsciente todos os aspectos positivos da consciência patriarcal, que são questionados e não vividos, como a lei, a ordem, a disciplina, o auto-controle, o ter responsabilidade, a coragem e a agressividade necessária para enfrentar as situações difíceis da vida, todos os aspectos, enfim, que compõem o espírito masculino.
Ao mesmo tempo, o Puer passa a ser valorizado e atuado de uma forma positiva nas mudanças tecnológicas e criativas da idade moderna, mas também de uma forma perversa, sendo a criança e o adolescente vistos como o centro da família, em torno da qual ela deve girar; o Puer também aparece na modernidade através da ideologia da eterna juventude, onde se estabelece uma ditadura da moda jovem e do aspecto jovem. O envelhecimento passa a ser estigmatizado e até o velho deve sempre ser rejuvenescido para ser aceito.
Cria-se, portanto, na cultura e no indivíduo, um nível muito alto de tensão entre as polaridades arquetípicas do Senex e do Puer, um conflito muito grande entre os dois lados: o Puer a exigir cada vez mais o seu espaço de renovação (e com o qual estamos culturalmente identificados) e o Senex, no inconsciente, a exigir uma atenção especial.
Assim, podemos voltar agora às nossas situações inicialmente enunciadas e tentar entendê-las. No caso do paciente citado, estaria o inconsciente, através do sonho, compensando uma situação para ele caótica, que o imobiliza e o deprime? Seria este o desejo do pai, de voltar a ser um pater familiae, uma auctoritas, o chefe? Poderíamos entender o sonho como um "chamar a atenção" para um lado paterno desprezado?
E nas situações extremas de violência entre jovens, o que acontece?
Poderíamos entender que jovens que delinquem, que se matam e se suicidam são um sintoma de que não são vistos, não são percebidos e não são iniciados no espírito do masculino ou na função paterna? Julgam que podem fazer o que querem de seu desejo, independentes da Lei?
Nas sociedades antigas os rituais de passagem asseguravam a saída do estado infantil para o estado adulto através de provas iniciáticas de coragem física e espiritual. Através destes rituais, os homens eram introduzidos nos mistérios da vida e na vida espiritual. Hoje, os rituais de passagem não contam com a sabedoria dos guias da comunidade. O adolescente muitas vezes vive sua passagem sem muita orientação, entre seus pares, muitas vezes caindo numa situação de violência e desestruturação, como o caminho das drogas, dos rachas, das gangues, dos trotres assassinos.
Assim, parece se impor um retorno do pai. Sabemos que a função paterna é uma função estruturante do psiquismo, como nos mostra a Psicanálise e a Psicologia Analítica. Através desta função saímos do inconsciente, de uma relação paradisíaca, onde somos completos, onipotentes e narcísicos. Através do Pai saímos da fusão com o inconsciente e da natureza e entramos na possibilidade de nos vermos como sujeitos, participantes da cultura.
Jung, em seu artigo "Tentativa de uma interpretação psicológica do dogma da Trindade", nos diz que a trindade, como símbolo, significa tanto para o indivíduo, no espaço de uma vida, como para a cultura, no espaço de séculos, um processo que se desenvolve em três etapas de amadurecimento. A primeira etapa é a do Pai, estágio primitivo de consciência, em que se está submetido a uma forma de vida como a uma lei. É um estado de não-reflexão, onde não há um julgamento intelectual ou moral.
Na segunda etapa, a do Filho, ocorre um quase parricídio, uma identificação violenta com o Pai, juntamente com a sua eliminação. Este estágio é racional e consciente, mas em oposição ao pai, é um estágio de conflitos (que é justamente o que está ocorrendo agora, no indivíduo e na cultura). O parricídio foi necessário para a evolução do eu, individual e cultural, caso contrário ficaríamos presos ao pai. O filho de Deus, Cristo, é uma imagem ou um mito que espelha esta segunda fase e a cruz a sua metáfora, isto é, a crucificação e "a vida exemplar de Cristo constitui em si um transitus (uma transição, passagem) e por isso significa uma ponte e uma passagem para a terceira fase, na qual o estágio paterno é restaurado... (Jung, 1980, p. 182). Esta restauração, no entanto, este retorno, não é uma repetição do primeiro estágio, mas uma integração das polaridades através da função transcendente, que na trindade aparece na forma do Espírito Santo.
O Espírito Santo é compreendido simbólicamente como uma função que é compartilhada pelo pai e pelo filho, é Logos, mas também Eros (Amor), sendo muitas vezes interpretado como feminino.
Voltando ao nosso tema, a perda e o retorno do pai, podemos arriscar a interpretação, seguindo os passos de Jung, de que o símbolo do pai deve retornar ao mundo manifesto, mas de uma forma diferente. Qual o pai que se aproxima no futuro? Sabemos pela experiência recente da ditadura e do movimento que se opôs a ela, assim como pelas pequenas ditaduras que emergem nos relacionamentos, que o pai déspota está nos seus estertores e que a consciência coletiva começa a se colocar contra o arbítrio. Assim como não queremos o pai déspota, podemos querer um pai que espelhe a evolução apontada no símbolo da Trindade - um pai e um filho unidos pelo espírito e pelo amor.
Há todo um movimento já consciente de que os conflitos vividos na cultura não devem ser lidados ao nível da solução "vinda de cima". Na família fala-se em negociação entre jovens e pais. Experiências realizadas nos países desenvolvidos e aqui mesmo no Brasil (na Favela da Mangueira, no Rio; o projeto Axé, em Salvador) mostram que a violência diminui à medida em que os jovens têm uma participação mais efetiva nas escolas e na comunidade. Oficinas de arte, criatividade, movimentos de profissionalização, acesso a recursos como a informática, tiram o jovem da marginalidade, porque estes se sentem participantes e atuantes, sentem-se vistos e respeitados. Começam a descobrir um sentido para viver.
Pais, educadores e governantes se vêm, portanto, diante de uma tarefa de responsabilidade - resgatar o espírito do pai na sua polaridade construtiva, numa nova forma de consciência, em que a "autoridade" e não o autoritário, possa ver o filho, o aluno e a população como um outro, um parceiro, um filho-irmão.
Talvez todos esperemos que emerja em nós e na sociedade um pai que seja firme, mas também misericordioso, como na parábola do filho pródigo. Nesta parábola, um filho que saiu de casa e perambulou pelo mundo, dissipando sua herança com bebida e mulheres, é recebido pelo pai com misericórdia, apesar dos protestos de seu irmão que havia sido sempre decente aos olhos do pai. E o pai disse ao filho obediente: "Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois este teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado" (Lc 15, 11-32).
Teria sido este pai pulsilânime ao receber o filho com afeto? Não teria sido mais corretiva a dura aplicação da lei? Aqui arriscamos a dizer não. Não é verdade que este pai não soubesse da exata aplicação da lei ou fosse inconsciente de uma consciência patriarcal. Acredito que aqui ele percebeu o sincero arrependimento do filho e lhe deu uma nova chance, isto é, ele soube integrar à sua paternidade o elemento amoroso, que fez dele uma personagem exemplar da emergência de um novo modo de ser pai.
Talvez todos nós, individual e coletivamente, sejamos também filhos pródigos que esperam, apesar do erro e da insensatez, um retorno ao abraço do Pai.
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