terça-feira, dezembro 04, 2007

Michele II

Tinha comido um jacaré na aula de literatura. Desce as calçadas da Consolação cambaleando, desvia dos postes, das pessoas. Seu vestido era lindo, todos diziam. A cabeça zanza por aqueles calçadas irregulares.
O tráfego, uma guerra. Dos barulhos da cidade o que mais lhe agrada são os sons vindos de uma antiga escola. As janelas voltadas pra calçada, deixam escapar ecos de corredores e salas quase vazios, vozes estridentes de crianças que ainda não sairam de todo pra tarde sufocante, quente.
Acaba de ler um livro que fala sobre a amizade, distância e tempo, que unem e separam amigos. Tiraram as nuvens do cemitério e ninguém reclamou, nem os mortos.
Tira os óculos pra disfarçar uma lágrima, pensa intermitantemente na importância da arte. A cultura, a arte, dois aspectos de sua vida pueris e sem valor se não chegam aqueles que realmente sentem fome delas. Cogita sobre o fenômeno da criação artística ou concebe um poema bem sucedido. Passa a mão no cabelo pois sentiu uma folha em sua cabeça. Não acredita que a arte pode ser abarcada pela crítica, reduzida a teorias. Afinal havia na criação elementos e dimensões inimagináveis à razão e a inteligência.
O melhor que ela possuia era seu ódio. Sobretudo odiava qualquer tipo de religião, que tolice, mais um braço armado da dominação do homem sobre as mulheres. Tudo que a rodeava era a representação daquela sociedade patriarcal, repetição do estado das coisas, mais do mesmo. pensou sobre a história e o início dos tempos, o início e o princípio. Desde quando as pessoas santas eram representadas com a cabeça envolta em uma aura clara e luminosa? de onde veio o costume?
O cérebro ronca, tal qual sua barriga. Tinha de fugir mas não sabia pra onde. Buenos Aires, Rio, Lisboa? Fugir pra onde? A biblioteca mais próxima era a Mario de Andrade. Na cabeça tinha um homem duplicado e um jogo da amarelinha. Lembra-se de carregar o cartão de transporte, que pena o transpote público estar daquele jeito. Na próxima esquina um cachorro e um sujeito na calçada, dormiam, isso daria um conto? Pensou em Machado e Galeano. Olha de soslaio os pobres diabos na calçada, odeia ter pena de gente e de cachorro. Odeia as pessoas na rua que a olham como um pedaço de carne, tipo aqueles pendurados na banca de jornal. Definitivamente o ódio era o melhor sentimento que ela possuía.

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